sábado, 31 de dezembro de 2016

Facto do ano: Ribeiras do Funchal

génese
O 20 de Fevereiro provou a robustez das paredes de basalto, com mais de 200 anos, dos encanamentos das 3 ribeiras do Funchal. O seu enchimento com detritos sólidos trazidos pelas enxurradas provocou o transbordo das ribeiras e as correntes distribuíram-nos livremente na baixa da capital. Paralelamente, o nível do mar subia. Ficamos elucidados sobre a capacidade dos movimentos das vertentes das ribeiras para alimentar a aluvião. As obras da Lei de Meios respeitaram uma parte do Estudo de Avaliação do Risco de Aluviões para o Funchal. Os açudes em betão a montante foram uma boa opção que, ainda assim, pode gerar discussões sobre o espaçamento que só recolhe pedras com um diâmetro superior a um metro. Serão capazes de segurar o volume de detritos sólidos que vimos no aterro que esteve na frente mar?


Agudização do problema
Após os grandes incêndios no Funchal, a cidade repete a conjuntura de calvície das suas montanhas na aluvião de 9 de Outubro de 1803. Expuseram a fragilidade da argumentação dos que defendem o revestimento das paredes de basalto das ribeiras e derrubam património histórico edificado em bom estado. A obra não é uma solução, é uma agressão, o seu efeito será residual perante a capacidade de débito da matéria sólida constitutiva das aluviões dos vales, agora ainda em pior estado, sobretudo em troços fundamentais como o Viveiros - Fundoa e a norte do Campo do Marítimo. Invocar a segurança para silenciar detractores é um registo para memória futura, ambos têm a mesma preocupação mas por caminhos diferentes. Neste momento, mais do que uma consciência é um negócio. O esforço financeiro deveria estar consignado à reflorestação para fixar terras por indicação do supremo estudo que o 20 de Fevereiro forneceu. Financiada pela UE em 85%, nos termos do POSEUR, a obra não teve um Estudo de Avaliação de Impacte Ambiental independente e atravessa o coração histórico da cidade em zona de protecção legalmente estabelecida, só foi possível porque o Governo decidiu em causa própria.

A gestão política
A decisão da obra com a respectiva justificação técnica, orçamentação e apoio comunitário, têm origem no mandato anterior e é parte de uma narrativa maior que se estende aos nossos dias. No passado, a solidariedade institucional não abria brecha política, a incompetência tinha seguro de vida. Na actualidade a culpa acaba no “mexilhão” e a cúpula hierárquica entrega o erro pronto-a-consumir sem remetente. Quando o PSD-M, em Conselho Regional, ensaiou um culpado para a má governação, ameaçando com o afastamento quem obstaculizava, julgo que a maioria dos madeirenses sorriu. As décadas de governação do PSD-M instituiu a ideia de que ninguém se candidata a perder o emprego, tudo segue os ditames da vaga do momento. O problema não será exactamente ao contrário? A submissão aos interesses empresariais e políticos.

Foto de Danilo Matos


A Opinião Pública
O único bloqueio com origem numa avaliação desinteressada teve origem na Opinião Pública, com fundamento técnico e por cidadania numa rede social. Onde estiveram os deputados a debater as ribeiras na ALR? Qual o esforço do Ambiente e Recursos Naturais perante este despesismo para alcançar maior orçamento para a reflorestação? A CMF fez tudo o que devia? Os pareceres dentro do governo foram idóneos?

Mediador suspeito
Com a popularidade em queda e a contagiar o governo, o secretário da tutela surgiu em postura de mediador, até então ausente e inocente mas que deu início às obras que transfiguram a cidade. Usou uma interpretação da conjuntura que o iliba, incutindo bom senso aos projectistas da obra para se conciliar com o aceso debate público. A obra veio do passado e passou a ser coisa do futuro sem presente. A contenção política, verbalizada na suspensão do projecto para o trecho da ribeira de Santa Luzia entre o Bazar do Povo e a Ponte D. Manuel, não foi suficiente e só serviu para criar mais desconfiança e dúvidas. Em postura de Pilatos, foi politicamente irresponsável, orçamentalmente abusivo, tecnicamente doloso e historicamente um sismo.

A agravante

Como é que um secretário regional que lidera partidariamente um Gabinete de Estudos, órgão supostamente aberto à sociedade civil, consegue omitir opiniões válidas e ter a Opinião Pública contra? Onde reside a força de bloqueio que destrói a imagem do governo? Envolver traz consensos mas, cada um sabe dos seus propósitos.

O futuro
Quando os tapumes forem retirados estará consumada a dimensão e o impacto da obra. As Buganvílias, outro ícone do Funchal, será passado. Com a aceleração das correntes, ao chegar à entrada e ao interior da Pontinha, vão provocar ondas de fundo que afectarão as manobras de acostagem e amarrações dos navios. Enquanto não se segurar a montante, as ribeiras serão, tão só, sarcófagos dourados. Entretanto, a actividade económica junto às ribeiras ou ocupando os leitos naturais prosseguirá. Estamos a compilar uma série de erros que vão incrementar despesas fixas de manutenção e desassoreamento com calendário estabelecido.

sábado, 24 de dezembro de 2016

Promoção de Laranjas

poca de laranjas com o diabo na casca e também de sermão, levadas, quase dadas, sempre com cartão. Provêm das quintas, as da casa, essas coitadas, já não servem a tradição. De preferência com etiqueta e bom nome para dar elã, quase gourmet a caminho da Michelin. Se a variedade ainda assim engana, por culpa da apresentação, quando não verte sumo fica em xeque a cunha e a apelação. Ai, ai, ai, fotógrafo do engano zelando pela agremiação, paga-se um preço tão alto por este custo de produção.
O chefe de família apronta-se à saída de casa, é o momento da verificação, chaveiro, telemóvel, óculos para a falta de vista e acaba-se a reflexão, essa tantas vezes importunada por vozes em cornetão, cá vai mais uma que dispara: - NÃO TEMOS LARANJAS, COMPRA COM CARTÃO! Quis comprovar no “lençol” mas esse forrava a gaiola do rouxinol. O gato, ícone da casa, sempre prostrado em posição esquisita, lança uma pata sobre as orelhas e outra sobre a visão. Calem-se avisos estridentes da reacção, ele não quer saber da promoção, bem, só hesita se também tiver ração.
Chegado aos frescos, banca das laranjas, qual púlpito virado para um congresso, eram de facto imensas, de pôr os nervos em franjas. Sem cor uniforme isto vai ser uma maçada, escolhe-se conforme, bum bum avança a caçada. Da intensa cor uns vêem laranjas, outros abóboras, a alguns sabe a mel silvestre, para os mais indecisos, é tipo Kompal, é um manga-laranja, pende para o lado do maior arraial. Vale tudo, algumas colocam-se vistosas como que a dizer: - se me apalpas … levas-me. Ai a tentação. Retirou a embalagem que descoseu pelo picotado, coisa frágil para a quantidade que enche o saco. De frente para as laranjas sentiu-se jota, quando já vai cota, e traça o rumo nesta vivaça e pueril banca apanhada verde para o consumo. Que saudades de uma boa fruta caseira, apanhada no tempo certo para o presépio de escadaria, esse que nem dá canseira, mas onde o gato não larga a frutaria.
Esperto, o chefe de família começa por cima, distribui mas igual fica, ao apalpar arrepiou-se, estavam gélidas da câmara, a frigorífica. Terminada a transferência de calor apalpou com mais vigor e pressentiu, são das secas Senhor! Meteu no saco respeitando a boa ética, de não apalpar e deixar ficar. Com a experiência obtida foi a outra tonalidade, sempre com as primeiras em cumplicidade. Ao retirar aquela, especificamente, veio outra que amparou com o cotovelo, ai que dores quando chegam ao mesmo tempo. A posição não era ortodoxa mas ninguém viu, os tempos não andam católicos, psiu! Safou-se, e de novo com boa ética meteu a segunda no saco, somou experiência precisando do ábaco. Agora é escolher da mesma tonalidade, contudo as melhores são das mais profundas e decidiu-se por outra variedade. Ao retirar, deslizam sete ou oito para o outro lado onde também há biscoito. A terceira não era má mas agora começa o problema da fartura, decidir qual de tanta apanhadura? Enquanto a quinta mingua, por opção, o baldio aumenta com a selecção.
A pomologia diz-nos que há-as com umbigo enorme, atasca a máquina e não verte sumidade; sem pevides, consome-se mas, dali brota nicles; de casca grossa, viçosa mas com gomos palha; com nome pomposo, das que chamam a atenção mas, azedas que até apertam a tal visão.
Existe até a variedade “sanguínea”, laranja por fora mas vermelha por dentro. Há outra chamada canalha, da prateleira não tenho ideia, faz-se um bolo sem falha, sai lindo do forno para admiração da assembleia, aplica-se o sumo, afunda a sobremesa, que tristeza, só me faltava a diarreia.
E a cimboa? Mais do que um ornamento, uma delícia! Combina a forma da laranja com a cor do limão, sem malícia, dá um porta-enxerto de assombrar, apesar de saborosa metade é para descascar. Que escolha faz este supermercado, com tanto doutor e engenheiro sem escola, em gabinete a estudar? Pomologia rara que despreza como fruta “feia”, quando sumarenta, é de pasmar!
A odisseia prossegue, a mãozinha viril lá foi à fruta queque, que ideia imbecil! O mundo desaba-lhe, por sorte, na anarquia das roliças, só uma sobrou para as hortaliças. Estrelinhas esvoaçam e anjinhos tocam harpa, está feita a ornamentação, finalmente se percebe o que é Natal com um safanão. O obstáculo não cunhou a bicha que se estatelou, foi ao chão. A falta que fazem duas mãos ocupadas na fruta. O talude cede mas está tudo controlado, desde que se mantenha de quatro. Olhando para cima, pânico! O ananás com imponente coroa a perder alicerces. Pelo amor de Deus, aguenta-te. Deitado e espalmando, qual vibrador de laje tirando bolhas de ar, vai observando a laranja derrotada, a que caiu, a rolar pelo chão. Que triste fim da produção. Levará um coice espremida pelo carrinho em contramão ou alguém civilizado apanha com a mão? Não! Voltou o desassossego dos grisalhos com o laranjal, a velha ficou na horizontal. Que faz ela aqui se temos a inclusão em festival?! Raios partam a velha mas, tratem-na com carinho e atenção, não estraguem a promoção. Lembrem-se, a laranja caridosa sacia a pobreza viciando a condição.
Em tão pouco tempo a nova remessa esgota, que grande sucesso esta promoção, a altiva cúpula desbota, as laranjas são levadas, de uma a uma, pela mão. É chegada a hora da laranja-cenoura, uma bebida de eleição, quando faltam as primeiras acenam-se com as últimas, mantém a folia, parece um presentão.
Mais um ano passado, sempre a mesma conclusão, com tremendo enfado, o que nos vendem é ilusão. Fazemos figura de pato, com laranja, para manter a tradição.
Enfiado, o chefe de família assoma-se ao balcão: - nem que talhe, quero um batido de limão!



Diário de Notícias do Funchal
Data: 24-12-2016

Página: 27
Link: Promoção de Laranjas

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